Vamos ter outro bebé?

Mas eu não sou vocês. E, com o passar dos tempos, esta verdade de La Palice tem ganho dimensão na minha cabeça. Eu não sou vocês, como ninguém é o outro. Complicado? Demasiado óbvio? Responderia: claro, simples, mas infelizmente nem sempre evidente.

JARDINS SECRETOS OU TERRA DE TODA A GENTE?

O que são os filhos? Quem tem o dever, o direito, a responsabilidade de os planear, decidir ter, criar, educar, fantasiar, projectar? A resposta parece indubitável: os pais. E quando cada vez mais se fala de «parentalidade responsável», talvez seja bom não roubarmos com uma mão o que acabámos de estender na outra.

Todos nós fantasiamos bebés desde os nossos dezoito meses de idade. Desde que embalamos um urso de peluche ou um boneco, desenham-se à nossa frente centenas de filhos, nos quais iremos pensar cada vez que virmos um bebé, um boneco, uma fotografia ou um berço no passeio. A realidade será outra, desde nenhum a muitos, seja ela fruto do acaso que tinge todos os percursos de vida, seja forjada em decisões quase lógicas e racionais. Mas depois de começarmos a pensar em bebés, fantasiamos os pais ou mães dos nossos bebés, o que passa pela sedução do nosso pai ou da nossa mãe, da professora da escola, dos actores e actrizes de Hollywood ou pelas namoradas e namorados do jardim de infância, num dia «os maiores», no outro «meninos para os quais nem sequer olhamos porque são uns estúpidos».

Serve isto para dizer que ter filhos é um projecto a dois, mesmo quando parece não ser. É a dois porque «tem de ser a dois», como diria o «amigo do óbvio», mas também é a dois porque mesmo que a relação seja ocasional, mais sexual do que projecto, há na mente a ideia da concretização da fantasia de ter filhos. É por isso (também) que as pessoas gostam de fazer amor.

Sendo um projecto a dois, maioritariamente baseado em amor, e sendo a criação de alguém (a palavra «criança» vem de «criar»…), envolve fazer, desenvolver, educar, orientar, apontar caminhos, cuidar… e amar. Será então possível que um projecto desta dimensão – o maior, mais fantasiado e melhor estruturado de toda a nossa vida – seja entendido, na sua totalidade, por outros? A resposta para mim é taxativa: não!. Não é nem poderia ser, porque, pelos menos nas comunidades ditas ocidentais, os pais são os responsáveis pelos filhos (a própria legislação é cada vez mais vigilante e punitiva para quem não assume esta responsabilidade) e, perante uma decisão desta dimensão, só a eles cabe decidir e só a eles cabe entender as razões das decisões.

Comentar, falar, emitir conselhos, opinar não é admissível e faz parte de um dos nossos defeitos principais, que é a desagradável relação de poder que a parte menos boa da nossa condição humana gosta de exercer, sempre que se entreabre uma janela. Dizer aos outros o que devem fazer (sem ser como resposta a um pedido expresso de opinião), em assuntos tão íntimos e privados, é invadir os seus jardins secretos, é desmanchar as construções mais pessoais, é querer controlar os outros nos territórios mais sagrados.

IDADE – A DITADURA DOS OUTROS

Esta é outra. A «salutogénese» levada ao exagero conduziu à confusão de perigo, de probabilidade com certeza. «Não se pode» ter filhos depois dos não sei quantos (ou antes de outros não sei quantos). Ter filhos depois dos quarenta? Loucura. Pais-avôs, mães-avós. Mãe idosa, como vi uma vez escrito na primeira página de um Boletim de Saúde de um recém-nascido de uma mãe com 36 anos de idade. Ter filhos antes dos vinte? Pois é, a juventude está perdida!

 A noção de que certos riscos aumentam com a idade, ou seja, a probabilidade de certas doenças (cromossómicas, sobretudo) aumentarem é uma realidade, como a trissomia 21. No entanto, levar estes dados ao exagero, estabelecendo «idades para ter filhos», afigura-se-me ridículo. E perigoso.

 O que é que o Estado, os serviços sociais, os profissionais da medicina ou seja quem for tem a ver com decisões que cabem, exclusivamente, a duas pessoas? Se por um lado se pretende que as pessoas sejam responsáveis e façam as suas escolhas, com tudo o que isso possa acarretar, por outro há um gosto de comentar (e criticar) essas escolhas.

Creio que cada um deve ter filhos quando se acha preparado, o deseja, e de preferência representando um projecto com o que se possa adivinhar de sólido, dentro da normal imprevisibilidade do dia-a-dia.

IRMÃO PARA OS IRMÃOS?

«Ah, ele anda a pedir um maninho!. Decidimos dar ao Diogo um irmão, vamos a ver se não sai uma irmã…Já lhe perguntámos, mas ele disse que não queria…»

Um filho é sempre um momento muito especial, quer para os pais, quer para os filhos que já existem. Ter um irmão é talvez dos acontecimentos maiores da vida de uma criança mas, por isso mesmo, ela não fica indiferente e o mais provável é experimentar toda a paleta de sentimentos, muitas vezes em simultâneo, com toda a perplexidade e a ambivalência que isso traduz e implica, em termos de comportamentos.

No entanto, tenho para mim que não se devem ter filhos para responder à eventual «necessidade» dos filhos já existentes terem alguém mais na fratria. Os pais têm filhos, os irmãos não têm irmãos, no sentido de ser deles a decisão. Os irmãos são um «efeito colateral» da decisão parental. E não mais. São muitos os casais que têm dúvidas quanto ao que fazer. Desejam ter filhos, mas antevêem dificuldades de vária ordem (algumas delas exageradas, em termos de importância), as suas pretensões são censuradas pelos familiares e amigos, a sociedade parece que quase acha obscena a ideia. Atiram, pois, o ónus da decisão para cima do filho já existente, sabendo de antemão que este vai dizer «não!». Outra coisa, aliás, não seria de esperar – alguém pergunta a um rei se quer partilhar o poder? Raros são os exemplos afirmativos.

Não emitirei qualquer juízo de valor sobre filhos únicos, ou famílias numerosas. Podem encontrar-se virtudes e defeitos em qualquer pessoa e os estereótipos que até podem ter correspondido à verdade em dada altura do tempo, neste momento não são possivelmente um fatalismo. O «pequeno ditador» só o será se os pais deixarem. E isso não tem nada a ver com ser um, dois ou mais.

EMPRESAS E ESTADO

Já referi isto noutros artigos, mas não me cansarei de repetir: a hipocrisia e as contradições de empresas que precisam de pessoas (por exemplo como consumidoras) ou do próprio Estado que deveria ser o garante das liberdades individuais, e são os primeiros a coartar, na prática, a exequibilidade do projecto de ter um filho.

O emprego precário e a passividade estatal perante este fenómeno, ou perante a agressão diária aos direitos dos pais trabalhadores, violando muitas vezes a lei ou a ética (como a selecção dos trabalhadores conforme as intenções de ter ou não filhos), são exemplos do que deveria ser incluído numa política de natalidade, que permitiria aos pais ter os filhos que desejam e na idade em que o querem.

Sublinhe-se, no entanto, que algumas empresas têm dado passos de gigante, designadamente as de origem em países nórdicos ou são deles representantes, com benefícios para elas próprias, pela felicidade que dão a quem nelas trabalha.

A protecção e promoção da parentalidade através do apoio às mães e pais é um dever do Estado, doa a quem doer – claro que este processo é tanto mais difícil quando o próprio Estado é o primeiro a ignorar o que a Constituição ou a legislação define.

INFERTILIDADE

Algumas estatísticas apontam para entre 10% e 15% de casais com problemas de infertilidade. Ou seja, casais que tentam ter filhos e, por alguma razão, não o conseguem num prazo de tempo razoável. Aqui, sim, o Estado deveria dar o apoio que é justo (e também necessário), mas sabemos das dificuldades, das vias sacras e do custo económico, psicológico e social, aspectos que poderiam ser minimizados se houvesse um empenhamento maior do governo. Não é admissível, por exemplo, que os tratamentos de fertilidade sejam postergados e os medicamentos para esta situação não sejam gratuitos, como são (e muito bem) os contraceptivos nos centros de saúde.

UM PROJECTO AFECTIVO

Ter filhos deve ser, pois, parte de um projecto afectivo, de uma projecção no futuro de duas pessoas. Confiança e condições psicológicas, sociais e económicas são as premissas necessárias. Como qualquer projecto, só aos autores cabe a decisão. Os comentários de terceiras pessoas, sejam elas quais forem, estilo «não digas que não te avisei» ou «eu se fosse a ti», são de esconjurar.

Se ao Estado cabe garantir a igualdade de oportunidades, terreno em que tem sido ainda muito tímido e até contraditório, e ao mercado e empregadores cabe facilitar e respeitar quem decide ter filhos, é aos próprios pais quem compete, em exclusividade, escolher a oportunidade e tomar a decisão. É um direito e um dever. Uma responsabilidade mas também um exercício de liberdade. E se exigimos liberdade em coisas comezinhas, como prescindir dela em coisas tão transcendentes como os nossos próprios filhos?

NOTA, mesmo quase de rodapé: as condições que cada um quer ver preenchidas para concretizar o projecto de ter um filho variam de pessoa para pessoa e de casal para casal, não é possível estabelecer regras. No entanto, aconselho a moderação: não ser inconsequente ou pensar que basta «um amor e uma cabana», mas também não cair no logro de ser demasiado exigente, porque as «condições ideais» nunca surgem. A imprevisibilidade e a emotividade fazem parte da vida, e quando adicionadas ao bom senso e à lucidez fazem milagres…

ANO NOVO, VIDA NOVA

Ao aproximar-se o fim do ano começam a fazer-se projectos e promessas para o próximo. A ideia de iniciar um ano novinho em folha, imaculado, (ainda) não estragado por quaisquer actos ou omissões, impõe um certo respeito e, queira-se ou não, obriga-nos a repensar um pouco o que desejamos para o ano que se estreia, designadamente em que é que poderíamos ser melhores.

A maioria dos pais, se se perguntasse como desejariam corrigir as suas vidas como pais, no ano que se inicia, apontariam objectivos tão altos como inatingíveis. Ou seja, desejariam ser pais perfeitos, impecáveis, que nunca cometeriam qualquer erro ou teriam qualquer dúvida, já agora também com filhos igualmente perfeitos, para que nunca acontecesse nada de anormal ou desagradável. Ora isso não existe… isso, leia-se, pais e filhos perfeitos. Assim, ao fazermos como pais o exame de consciência do fim do ano e a ‘lista de intenções’ para 2008, a primeira coisa é pensar: não somos tão maus assim nem o ano que passou foi tão mau, nem vamos desejar ser perfeitos em 2008 porque, nem nós, nem o ano, conseguiremos isso. Agora, o que podemos é pensar em duas ou três coisas em que há que melhorar a nossa atitude como pais, de forma a que os nossos filhos disso beneficiem. Porque não então prometer: 

– estarmos mais tempo com os nossos filhos e, mesmo que isso seja impossível, melhorar a qualidade do tempo em que estamos com eles. Se a nossa vida não nos deixa mais de ‘cinco minutos’ ao fim do dia para estarmos com os filhos, vamos aproveitar esse tempo com rigor, estando disponíveis a 100 por cento, brincando com eles, ouvindo-os, conversando, estando… Para além disso, as próprias actividades do dia-a-dia, como dar banho, alimentar, poderão ser feitas com menos stress e sem que seja sempre um «frete», e sim com mais alegria – se, ao mudar uma fralda, estou a pensar no mau-cheiro e na porcaria, passarei alguns momentos muito desagradáveis. Se, em vez disso, for reparando na cara do meu bebé, no seu sorriso, nas gracinhas que já faz, o frete deixa de ser frete. Por outro lado, ao fim-de-semana, poderemos organizar melhor o tempo para actividades em conjunto com os filhos, em vez de estar tudo na mesma sala, especados em frente do televisor, a fingir que se está junto quando cada um deseja é estar sem os outros, que importunam, fazem barulho e incomodam. Além disso, quantas vezes se vai passear para um centro comercial atafulhado de gente e onde as crianças fazem birras porque querem isto e aquilo, em vez de os levar a um parque, à praia ou simplesmente a passear nas ruas, aproveitando esse espaço para mostrar-lhes coisas, ensiná-los, comunicar com eles;

– velarmos mais rigorosamente pela sua saúde, designadamente cumprindo o esquema de vigilância da saúde, ou seja, levando os nossos filhos às consultas de rotina dos 2, 4, 6, 9, 12, 15, 18 e 24 meses, e depois anualmente, cumprir a vacinação a tempo e horas, dar-lhes as vitaminas e os medicamentos que porventura eles estejam a tomar, promover a sua saúde nasal e oral;

– criarmos um ambiente seguro, de modo a que possam desenvolver-se, brincar e aprender a vida sem para isso correrem riscos de sofrer um acidente com lesões e traumatismos graves – assim, teremos que rever a nossa casa, a maneira como transportamos os nossos filhos no automóvel, os locais onde eles brincam, os infantários, creches e escolas, parques infantis, etc. Ao mesmo tempo, teremos que ser consumidores mais exigentes; 

– darmos mais mimo e mais afecto aos nossos filhos, o que não tem nada a ver com cedermos às suas chantagens ou utilizarmos o amor como moeda de troca. Educarmos os nossos filhos, não permitindo malcriações nem pondo-nos de cócoras perante eles é uma boa maneira de lhes dar amor. Por outro lado, devemos criar na família um ambiente de solidariedade sem cair no «sufoco», ou seja, respeitando a privacidade dos momentos e dos espaços de cada um, bem como organizar a vida familiar segundo algumas regras mas que podem (e devem) ser transgredidas em alguns momentos;

– criarmos um ambiente familiar que não seja de crispação, de stress e de guerrilha. Quando chegamos a cada, depois de um dia de trabalho e mesmo que cansados, não podemos ver a casa e a família como «inimigos», mas sim como um espaço e uns aliados que nos vão enfim dar o repouso e o bem-estar que desejamos. Poderemos também, em 2008, ser um pouco mais tolerantes, comunicadores, compreensivos, se bem que rigorosos e respeitadores das «hierarquia» familiares; 

– dialogarmos um pouco mais com as outras pessoas que tomam conta dos nossos filhos, como os educadores e professores, profissionais de saúde, etc. E interessarmo-nos também mais pelas suas actividades em casa e fora dela; 

– sermos um pouco mais nós próprios, mais naturais, estarmos mais disponíveis e mais descontraídos, seguros da nossa liberdade e árduos na defesa das nossas convicções, sem andar a querer provar, em todos os momentos, que somos perfeitos ou que nunca nos enganamos. A imaturidade não está em cometer erros, está em não se saber reconhecê-los e não aprender com eles.