Quanto custa fazer um filho

Elsa Casimiro tem 36 anos e um sonho de sempre, engravidar. Não só porque quer ter um filho, mas porque quer ficar grávida. Passar por tudo aquilo, pela barriga a crescer, pelas emoções à flor da pele, pela ansiedade do parto. Mas há cinco anos que, em conjunto com o marido, Rogério, trava um combate com a natureza para ser mãe.

Nunca imaginou que pudesse ter problemas de fertilidade, mas um ano à espera de uma gravidez que tardava em acontecer deixou-a com a certeza de que algo de errado se passava. O médico assistente prescreveu-lhe vários tratamentos de estimulação ovárica e aconselhou Rogério a fazer um espermograma para verificar se a causa da infertilidade do casal não estaria do seu lado. Três ciclos de indução sem sucesso depois e com um resultado normal no exame ao esperma, Elsa e o marido decidiram consultar um especialista em procriação medicamente assistida.

Marcaram logo uma consulta num centro privado. «Conhecia bem a realidade das listas de espera nos hospitais públicos e não queria perder mais tempo». Nesta altura, Elsa já imaginava que iria fazer parte das longas estatísticas da infertilidade em Portugal que indicam que um em cada sete casais em idade fértil sofre de problemas relacionados com a fertilidade. Por ano, surgem dez mil novos casos, que se juntam aos casais que ainda estão em tratamento por não conseguirem engravidar às primeiras tentativas. Motivo para as listas de espera no Serviço Nacional de Saúde irem crescendo ano após ano.

Uma biópsia confirmou um problema no útero de Elsa. Não era suficientemente nutritivo para receber um embrião. O médico propôs um tratamento farmacológico, que Elsa cumpriu escrupulosamente, e um novo exame para verificar a evolução. A análise ao útero revelou que a medicação havia resultado. Luz verde para avançar. Elsa submeteu-se a uma nova estimulação ovárica, desta vez com recurso a injecções. Mas nada aconteceu. Tentou novamente. E novamente o resultado foi negativo.

Estava com 32 anos. O médico sugeriu uma análise às trompas de Falópio. Nesta fase, a factura das despesas já ultrapassava largamente os quatro dígitos. Elsa e o marido sabiam o risco financeiro que corriam, mas estavam determinados a seguir em frente. O exame acusou uma trompa obstruída e outra suspensa. Perante este diagnóstico, só uma fertilização in vitro (FIV) poderia dar a Elsa e Rogério a gravidez que tanto desejavam. O casal decidiu imediatamente que sim, iriam avançar para a FIV, mesmo sabendo que teriam de desembolsar perto de três mil euros. Valor a que ainda teriam de acrescentar os custos com a medicação necessária para estimular os ovários, cerca de mil euros. Recorreram às poupanças e tentaram não pensar mais nisso.

Mas a FIV não resultou. O casal não quis desistir e decidiu tentar mais vez, mas agora seria a família a ajudar no financiamento dos tratamentos. O médico propôs uma outra técnica, a microinjecção intracitoplasmática (ICSI), mais cara (3500 euros), mas com uma elevada taxa de sucesso. Propôs também que Elsa e o marido se inscrevessem nas listas de espera de um hospital público e tentassem a sua sorte. Em Outubro de 2005, Elsa mandou a inscrição para três unidades – Hospital de Santa Maria, em Lisboa, Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia e Hospitais da Universidade de Coimbra. Foi aceite em Lisboa e Coimbra. Marcou consulta nos dois hospitais.

Na clínica seguiram com a ICSI. Só que o desfecho foi, mais uma vez, negativo. Pela primeira vez, Elsa sentiu as forças fugirem-lhe do corpo. «Decidi parar, precisava de recuperar o alento e encontrar tempo para mim e para o meu marido», recorda.

Os custos totais com os tratamentos ascenderam a mais de dez mil euros. Elsa e Rogério esgotaram o limite do crédito familiar. Tiveram de abandonar o sector privado. «Não podíamos gastar tudo o que tínhamos, a nossa vida não é só a infertilidade…»

Em Agosto de 2006, o casal foi à primeira consulta no Hospital de Santa Maria e, de imediato, entrou para a lista de espera da fertilização in vitro. Teriam, contudo, de aguardar dois anos. Por esta altura, num esforço de avançar em todas as frentes, Elsa e Rogério já estavam também a ser seguidos em Coimbra. O relógio não pára e Elsa sabe que, a partir dos 38 anos, as portas dos hospitais públicos fecham-se para as mulheres inférteis. Vale tudo! Depois de um longo processo, pontuado por muitas consultas, mais exames e algumas conversas amargas com os médicos, Elsa tem uma FIV marcada. Voltou a sentir esperança. Mas está mais serena. «Aceitei a infertilidade.» Se não fosse pelo dinheiro, «obviamente» que optaria por efectuar os tratamentos no sector privado. Em Santa Maria nunca é o mesmo médico a atendê-la, em Coimbra não sente calor humano.

GOVERNO ANUNCIA APOIO

Elsa e Rogério são apenas um entre os milhares de casais afectados pela infertilidade em Portugal. Estima-se que dez por cento da população tenha dificuldades em procriar. Todos partilham problemas semelhantes. Cláudia Vieira, presidente da Associação Portuguesa de Infertilidade (API), fala de um «cenário negro» no que toca à capacidade de resposta do Estado. «A Sul de Lisboa e nas ilhas não há um único centro público especializado nesta área. Deveriam realizar-se 1500 ciclos de tratamento por cada milhão de habitantes, ou seja, 15 mil ciclos por ano. Em Portugal faz-se um terço. É decepcionante que isto aconteça num país a braços com o envelhecimento da sua população.»

Para muitos casais, sobretudo os que têm de travar a batalha do tempo (quanto maior a idade materna, maior a dificuldade em engravidar), a solução reside nos centros privados. Acessíveis, mas caros. «Cada tentativa pode custar entre cinco a seis mil euros. Se pensarmos que muitas mulheres só conseguem engravidar ao terceiro tratamento, a factura total de uma gravidez com recurso às técnicas de reprodução assistida pode ascender facilmente aos 15 mil euros», explica Cláudia Vieira.

Com longas listas de espera para consultas e tratamentos nos hospitais públicos, as clínicas privadas acabam por ser o destino de todos, ricos e menos afortunados. Segundo a presidente da API, é comum os casais fazerem grandes sacrifícios para poderem pagar «pelo menos um tratamento». O recuso à banca e as «poupanças loucas» são exemplos dessa ‘ginástica monetária’. «Depois vem a frustração por não terem conseguido e os problemas financeiros por terem mais um encargo. Isto representa um drama psicológico.»

Um problema que não é exclusivo dos casais seguidos no sector privado, acrescenta Cláudia Vieira. Muitos dos que tentam fazer um filho nos hospitais públicos também têm dificuldades em pagar os seus tratamentos de infertilidade: «Isto porque os custos com os medicamentos necessários à estimulação ovárica são muito elevados, cerca de mil euros por cada tentativa. O Estado português apenas comparticipa 37 por cento desse valor. Muitos casais são obrigados a adiar as intervenções para quando recebem o subsídio de férias ou de Natal».

Um novo apoio anunciado pelo Governo, poderá vir a minorar os problemas dos casais inférteis. Os tratamentos de primeira linha, como a indução ovárica e a inseminação intra-uterina, vão passar a ser totalmente comparticipados nos centros privados. O mesmo é válido para o primeiro ciclo dos tratamentos de segunda linha, como as fertlizações in vitro e as microinjecções. A comparticipação dos medicamentos não será alterada. Segundo o Governo, esta medida visa reverter a actual combinação de encargos de 53 por cento para 44 por cento na parte a cargo dos casais e de 47 por cento para 56 por cento na parte de despesas do Sistema Nacional de Saúde. O Executivo suportará, numa primeira fase, um encargo adicional de doze milhões de euros, prevendo-se a realização de 6250 ciclos de tratamento, dos quais poderão resultar 1400 gravidezes e, previsivelmente, mais 1750 recém-nascidos (devido à gravidezes gemelares).

CRÍTICAS E EXPECTATIVAS

Médicos e doentes receberam esta notícia com um misto de expectativa e contenção. João Luís Silva Carvalho, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução (SPMR), considera a iniciativa do Governo positiva nas intenções, mas mal orientada na prática. «O maior apoio vai para os tratamentos mais simples e mais baratos, aqueles que as pessoas podem pagar. Isto não é uma verdadeira resposta às necessidades dos casais inférteis. Um apoio sólido seria a comparticipação de, pelo menos, três ciclos de fertilização ou de microinjecção.» O facto de não ter havido alterações na taxa de comparticipação dos medicamentos também merece críticas da parte do presidente da SPMR: «Muitos países europeus comparticipam estes fármacos a 75 e até a cem por cento. Se há dinheiro para pagar tratamentos nas clínicas privadas, também deveria haver para aumentar a comparticipação destes medicamentos. Caso contrário, os doentes seguidos nos hospitais públicos serão tratados de forma desigual, pois para eles não está previsto qualquer tipo de apoio.»

Silva Carvalho reconhece que as técnicas de procriação assistida são caras e que o Estado não tem capacidade económica para financiar todos os tratamentos de todos os casais inférteis, mas defende que o sistema deveria poder garantir um mínimo de três tentativas, comparticipando os custos em, pelo menos, cinquenta por cento.
A comparticipação de três ciclos de tratamentos de segunda linha é também a reivindicação da API. Cláudia Vieira vê o anúncio do Governo como um «importante passo» para ajudar os casais inférteis, mas considera o apoio escasso: «Em média, é sempre feita mais do que uma tentativa até se conseguir uma gravidez». Além disso, sobram muitas dúvidas: «De que forma vão ser beneficiados os casais? Todos vão ter direito à comparticipação? Como irão ser encaminhados? Há necessidade de se deslocarem primeiro a um hospital público?»

TECNOLOGIA CARA. SERÁ INEVITÁVEL?

Alberto Barros, especialista em genética médica, um dos principais rostos da procriação medicamente assistida em Portugal e dono de uma clínica no Porto, partilha as dúvidas em relação ao apoio anunciado pelo Governo, mas realça que a decisão revela um compromisso do poder político para com os casais inférteis. «Não vai responder inteiramente às necessidades desta população, mas é um primeiro passo.» Há muito que a infertilidade deixou de ser um problema individual e se tornou uma «questão social», sublinha Alberto Barros, que espera que a comparticipação de um ciclo de fertilização in vitro ou de microinjecção avance de facto. São estas as técnicas mais utilizadas nos centros em todo o mundo e que maior taxa de sucesso apresentam: 30 a 40 por cento.

O responsável está disponível para efectuar convenções com o Serviço Nacional de Saúde, mas «é preciso ver em que condições, tudo depende do montante que o Estado está disposto a pagar pelos tratamentos, pode não corresponder ao trabalho que as clínicas fazem». O melhor seria apoiar directamente os casais, defende Alberto Barros. Permitir uma livre escolha dos centros por parte dos utentes, que pagariam os tratamentos e depois seriam reembolsados pelo Estado.
Por que é que as técnicas de reprodução assistida são tão dispendiosas? Porque envolvem muita tecnologia e muitos profissionais. Para Alberto Barros, é inevitável que os preços sejam elevados. «No futuro, vão subir ainda mais.»

Cândido Tomás, director da Ava Clinic, em Lisboa, uma ‘filial’ de um importante centro de medicina da reprodução finlandês, discorda. Embora os tratamentos de procriação medicamente assistida sejam sempre caros, é possível baixar os preços. «Basta que haja alguma concorrência.» E em Portugal há pouca concorrência nesta área, defende o especialista. Prova disso são os elevados preços praticados nas clínicas privadas: «Os tratamentos são mais caros em Portugal do que na Finlândia.»

Quanto ao aumento da comparticipação anunciado pelo Governo, Cândido Tomás destaca, igualmente, o lado intencional da medida: «Há um reconhecimento da importância deste problema, que afecta tantos casais em idade fértil, e isso é muito positivo.» De resto, pode até ser uma «forma activa» de ajudar estes casais a engravidarem mais cedo: «Havendo uma comparticipação, não há necessidade de adiar o primeiro tratamento para uma altura de maior desafogo financeiro.»

SEGURADORAS NÃO COBREM

Para quem opta por ser seguido numa clínica privada poucas opções sobram que não a de pagar os tratamentos por inteiro. A maioria dos centros não tem qualquer acordo com entidades ou subsistemas de saúde. Alguns permitem, contudo, o pagamento faseado através do recurso à banca. É o caso do Instituto Valenciano de Infertilidade (IVI), que facilita a obtenção de linhas de crédito em duas instituições bancárias, para residentes em Portugal.

Nenhuma seguradora cobre as intervenções de procriação medicamente assistida. Para os profissionais do sector, esta é uma realidade difícil de entender. Alberto Barros diz que é uma «questão moral»: as companhias de seguros deveriam encarar a infertilidade como aquilo que ela é, uma doença. E pagá-la, como fazem com as outras doenças. À falta de iniciativa própria, a lei deveria forçar as seguradoras a alargarem as suas coberturas.
Esse foi um cenário amplamente discutido na fase que antecedeu a aprovação da lei da procriação medicamente assistida em Julho de 2006. A esquerda parlamentar defendeu vigorosamente este ponto. E até à apresentação final do texto ficou sempre no ar a dúvida se as seguradoras iriam ou não ser obrigadas a comparticipar os tratamentos de reprodução assistida.

Não foram. João Luís Silva Carvalho afirma que ficou «profundamente decepcionado» com o facto de a nova lei – que veio pôr fim a um vazio legislativo com mais de 20 anos – ter ignorado esse aspecto. «Faltou coragem política.»
A PAIS & Filhos contactou a Associação Portuguesa de Seguradoras e o Instituto de Seguros de Portugal na tentativa de perceber as razões da falta de interesse das companhias nesta área da saúde. Mas nem uma instituição nem outra quiseram manifestar a sua opinião. Contactámos também a Deco, no sentido de conhecer a posição da associação dos consumidores relativamente à falta de cobertura dos tratamentos de procriação assistida por parte das seguradoras, mas foi-nos dito que o assunto ainda não havia sido discutido pela direcção.

E O SECTOR PÚBLICO?

Enquanto o Governo prepara um sistema de acordos com as clínicas privadas para aumentar a capacidade de resposta aos casais inférteis, levanta-se a dúvida: e o sector público? Como combater as extensas listas de espera? João Luís Silva Carvalho diz que a solução do problema reside na criação de equipas de especialistas em reprodução assistida a tempo inteiro em cada hospital. Os médicos que se dedicam a esta área são também ginecologistas e obstetras e não podem, por isso, dedicar-se inteiramente à infertilidade. Neste sentido, há muito que a SPMR defende a criação de uma sub-especialidade em medicina da reprodução, que possibilitaria a constituição de quadros hospitalares próprios e permitiria a estes profissionais a dedicação exclusiva a esta área.

Elsa e Rogério pouco sabem destes problemas organizacionais. Dividem a esperança entre Lisboa e Coimbra, na expectativa de que algum médico obrigue a natureza a dar-lhes o bebé que tanto querem. No centro privado onde foram seguidos inicialmente deixaram alguns embriões congelados. Para já não consideram a hipótese de os utilizar, mas é bom saber que eles estão lá. É bom ter esperança. «Não posso estar parada, tenho de sentir que, mesmo em lista de espera, estou a lutar», desabafa Elsa. Há-de haver um dia em que talvez tenha de dizer chega, dar por terminada a batalha com o corpo. Encerrar contas. Mas «não penso nisso, essa é, por enquanto, uma gaveta que está fechada.»  .